"Museu fechado à elite não serve ao Brasil".


Ao deixar a direção do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 2006, Paulo Herkenhoff, 67, prometeu que não voltaria a assumir a chefia de um museu público. Sete anos depois ele foi apresentado como diretor do Museu de Arte do Rio (MAR), função que ainda exerce desde a sua fundação, em março de 2013. A mudança, Herkenhoff diz, não foi um revés na promessa. Instituição-símbolo do projeto de remodelagem da região portuária do Rio de Janeiro, o MAR é um museu municipal com parte do orçamento bancada por empresas privadas. "É um modelo que dá certo. Se fosse para ficar nas mãos apenas da vagareza do poder público, eu jamais assumiria a tarefa". Ex-curador do Museu de Arte Moderna de Nova York e da Bienal de São Paulo, Herkenhoff considera-se, sobretudo, "um fazedor de coleções". Na condução do MAR, sua curadoria ganhou o suporte de uma preocupação quase pedagógica. O título de "museu com maior equipe de educadores no Brasil", que Herkenhoff reproduz com afinco, traduz seu apego à ideia de inclusão. "Museus precisam ter acessibilidade conceitual", ele diz. A estratégia bem-sucedida de aproximação com a periferia carioca (não é raro o MAR abrigar batalhas de passinho e hip-hop) e a experiência internacional têm feito Herkenhoff viajar pelo país em palestras sobre a atual função dos museus, como fez há duas semanas, em Salvador. Nesta entrevista à Muito, ele fala sobre o papel desempenhado pelo Museu de Arte Moderna da Bahia, a falta de política de aquisição de obras dos museus brasileiros e a visão "paulistocêntrica", que teima em reger a arte no Brasil.

O senhor já disse que não prega uma obra na parede se não for para dizer algo, que não faz decoração de interior nem defende consumo. Há curadores ou museus no Brasil que fazem isso?
Muitos. Ainda mais quando qualquer um pode ser curador. Mas não digo isso como queixa, não. Acho que faz parte do mercado. Da esperteza de alguns, na contramão do trabalho de outros. No meu caso, não. Entendo que o espaço para a exposição e o tempo são muito preciosos para se gastar com besteira, com artistas fracos, sem potência simbólica. Acredito no museu que não lida com a ideia de sobrevivência, mas de existência. O museu que surge e existe para ser uma experiência emancipatória, que luta contra as forças que o enxergam como um parque de diversões.

O Museu de Arte do Rio, no qual o senhor é diretor desde a fundação, em 2013, foi inaugurado sob um discurso de explorar, ao máximo, o retorno social por meio de eventos educativos. Exposições com apelo popular não cumprem melhor essa função?
Fazer mais um museu que seja fechado às elites, num processo de lutar por uma mesma audiência, não serve mais ao Brasil. A maneira como nós trabalhamos no MAR parte da conclusão de que museus precisam produzir esforços de inclusão. Ter acessibilidade conceitual - seja através de textos de parede ou do trabalho de mediadores. Numa pesquisa que fizemos, há um ano, os visitantes que vinham de áreas mais carentes ou que iam raríssimas vezes a museus afirmaram que o MAR era um museu onde eles se sentiam representados, porque tudo era simples de entender. O MAR abriga, com regularidade, uma batalha de hip-hop, mas não chamamos qualquer um, e sim MC Marechal, que tem extrema consciência social. As batalhas têm relação com as exposições. Não estou falando em show para atrair multidões. Estou falando em pensar, verdadeiramente, em inclusão.

O MAR não depende totalmente da verba pública. Quanto o financiamento privado pesa na condução do museu?
A prefeitura do Rio coloca em torno de R$ 13 milhões por ano. E nós temos empresas que doam e que não doam pela Lei Rouanet. Esse é um museu público, mas não partidário. Doar dinheiro para o MAR é doar dinheiro para a educação. Se a empresa quiser cooperar dessa forma, temos o maior prazer em trabalhar juntos. Se estiver atrás apenas da propaganda, aconselhamos que procure outra parceria.

O modelo de financiamento europeu, público, contrapõe-se ao americano, que privilegia o mecenato e a autogestão. O intercâmbio entre os dois modelos é o melhor caminho para o Brasil?
Numa sociedade onde existe uma civilização museológica mais complexa, como a Alemanha, um diretor de museu raramente está ao sabor das eleições. Há diretores que ficam 25 anos; eles não entram para ficar dois ou três anos, mas para desenvolver o projeto daquela sociedade de ter um museu. Nenhum sistema de financiamento é perfeito. Não acredito em sistemas de uma perna só. Mas vamos pegar o exemplo da Bahia, que teve um projeto museológico e cultural muito forte nos anos modernos. Hoje, a Bahia não tem nem algo próximo a isso. O estado espera por alguém capaz de abarcar o seu potencial e colocar, juntos, os seus melhores talentos e melhores projetos. Ainda assim, se eu tivesse que indicar um museu que me encanta pela esperança com que se lança para a sociedade, seria o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA). Não vejo, no horizonte brasileiro, um museu com tanta audácia no enfrentamento de seus limites. O que acontece na Bahia é um exemplo de como a gestão pública dos museus brasileiros é, em sua maioria, deficiente, mas há sempre gente disposta a lutar.

O MAM, surgido dentro do projeto moderno que o senhor menciona, é exemplo da falta de uma política de aquisição de obras dos museus públicos brasileiros...
Pouquíssimos museus brasileiros colecionam. E a primeira tarefa de um museu é colecionar. Sobretudo um museu público. Não há sentido em empresas privadas fazerem coleções. Depois de um prazo as obras deveriam ser disponibilizadas ao estado e distribuídas pelo país. Hoje, nós vivemos um sistema de colonialismo interno. Não há lugar no Brasil que consiga expor obras que estão em São Paulo, na mão de colecionadores particulares. Dependemos das decisões paulistanas.

O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão do Ministério da Cultura, não tem criado condições para iniciar uma política de aquisição de obras?
O Ibram, hoje, parte de uma visão técnica, menos personalista. Na gestão passada, dividia os museus entre amigos e inimigos. Acho que o (ministro da Cultura) Juca Ferreira está, neste momento, diante da dificuldade de recursos, conduzindo duas grandes tarefas: lutar pela manutenção do ministério e garantir que os poucos recursos tenham uma repercussão mais intensa. Porque a crise está impelindo - não apenas ao Juca, mas a todos nós - a transformar o limite em potência.

O que significa separar museus entre amigos e inimigos?
É preciso deixar claro que o Ibram representa a visão do estado, não da museologia brasileira. Um exemplo dessa visão personalista do Ibram, que eu quero crer que esteja chegando ao fim, foi quando colocaram a Advocacia Geral da União (AGU) em cima de mim, no momento em que eu estava à frente do Museu de Belas Artes (RJ). Isso porque eu havia sido indicado pela gestão anterior. No fim, acabei recebendo louvor da AGU e do Tribunal de Contas da União. Estava ali para fazer, não para roubar. Mas aquilo foi uma manobra para pressionar. E isso acontece porque as pessoas, no estado, têm projetos de poder. O sujeito está num cargo e se enxerga, em cinco anos, como ministro, como presidente do Iphan. As pessoas usam os cargos como trampolim. O Ibram não pode ser trampolim para nada.

O senhor argumenta que museus, para sobreviver, devem se distanciar do espetáculo. Mas museus com arquitetura e cenografia arrojadas se espalham pelo mundo. A arquitetura espetacular e a inserção dentro de um imenso programa de reurbanização do centro do Rio de Janeiro também não são partes fundamentais da popularidade do MAR?
As pessoas não se envolvem só pelo entretenimento. Elas se envolvem porque algo lhes fala profundamente. Museus sempre beiram a decadência quando estão satisfeitos com o que fazem. (O filósofo e historiador francês) Didi-Huberman diz que a cultura do espetáculo é a cultura da alienação. A arquitetura não é, necessariamente, espetáculo. Muitos museus que possuem uma arquitetura deslumbrante não são locais de promoção da cultura do espetáculo. Lançar livros, catálogos, promover exposições que acenem a dimensão crítica do público não é fazer cultura do espetáculo. O Rio de Janeiro há quase 50 anos não construía um projeto urbano adequado e a cidade está recebendo projetos arquitetônicos do (escritório americano) Diller Scofidio, do (espanhol) Santiago Calatrava, do Bernardo Jacobsen (que assina o MAR). Isso é um fundo cultural para a cidade.

Na última década, houve uma supervalorização da figura do curador - tornou-se uma grife. A curadoria, como peça fundamental do circuito, chegou ao fim ou só estamos no início desse processo?
Primeiro, existe certo desconforto, em relação à curadoria, por parte dos artistas. O artista que mais me atacou na curadoria da (24ª edição da) Bienal de São Paulo foi porque ele queria estar na Bienal, mas não estava. Óbvio, ele não diz isso. Minhas exposições têm muita curadoria, anotação, pesquisa. A curadoria é necessária, como o artista também é. Muita gente se diz curador sem ser. Mas esse não é meu problema e não é o de gente séria. Nosso problema é tentar honrar a arte e cometer alguns atos de audácia.

O que é uma boa curadoria?
É a imantação dos espaços. A curadoria é um discurso com os símbolos do outro. Então, o curador precisa ser um depositário fiel desses bens culturais. Não pode admitir censura. Porque, se admite, ele é o censor; subscreve a intriga. O curador que se deixa levar pelo cargo, por uma pressão do poder, está traindo não apenas a sua profissão, mas a arte.

No livro Tempos de grossura - o design no impasse, com textos do período à frente do MAM-BA, Lina Bo Bardi expõe a necessidade de a arte reexaminar a história do país, não através do folclore, mas de Aleijadinho, "dos nordestinos do couro e das latas vazias", dos negros. Os museus brasileiros têm se saído bem nessa tarefa?
A Lina Bo Bardi foi alguém que estava interessada em inserir o outro no processo. No Brasil, nós temos uma visão eurocêntrica e uma visão 'paulistocêntrica'. Recentemente, fiz a exposição que se chamava Pernambuco experimental para mostrar que a modernidade, em Pernambuco, contribuiu para a modernização de São Paulo, e não vice-versa. Fiz uma exposição sobre a Amazônia, onde discuto as vanguardas que fazem parte da história de Belém. A visão eurocêntrica e 'paulistocêntrica' ainda dominam o Brasil. Não é fácil desmontar os mitos.

Fonte: A Tarde
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