O ativismo urbano e o valor de uso do espaço público.

Arquiteto e professor da USP comenta ciclo de debates com grupos que atuam no espaço público em distintas frentes. Um dos organizadores dos encontros, ele resenha os temas principais e mostra que o atual ativismo urbano se pauta pela ideia de ocupação temporária do espaço público, dando-lhe valor de uso.


Neste ano de 2015, com a direção da antropóloga Sylvia Caiuby no Centro Universitário Maria Antonia (USP), criamos um ciclo de seminários chamado "Inquietudes Urbanas". Focalizando discussões sobre a relação entre a dimensão conflitiva do espaço urbano e o papel formador do ensino universitário público, o ciclo tem abordado temas candentes, como a violência contra a mulher, o uso do crack em espaços públicos, a discriminação contra LGBT, a intolerância religiosa, a segurança e o sistema penal, e as várias formas de ativismo urbano, entre outros.

A grande atenção que esses debates têm despertado é, me parece, um sinal positivo em relação às possíveis formas de diálogo crítico entre a universidade pública e a sociedade, em uma região central da cidade.

Em particular, organizei duas edições do evento. Uma, agora em novembro, intitulada "Plano Diretor, Por Quem, Para Quem", com Nabil Bonduki e Guilherme Boulos, e outra em agosto, intitulada "Ativismos na Cidade: Fricções entre o Público e o Privado". Concebida em parceria com Thiago Carrapatoso, essa edição do "Inquietudes" ocorreu em duas sessões em semanas consecutivas, e é a ela que vou me referir nesse artigo.

O ponto de partida foi o convite a diversos grupos ativistas que têm atuado em São Paulo, criando uma roda de conversa aberta em que os diversos pontos de vista pudessem ser colocados e debatidos.

Foram convidados representantes dos coletivos Arquitetura e Gentrificação, Assalto Cultural, A Batata Precisa de Você, Casa Latina, Casa da Lapa, Casarão do Belvedere, Casa Rodante, Coletivo BijaRi, Coletivo Cartográfico, Contra-filé, Política do Impossível, Sistema Negro, Terreyro Coreográfico, Wikipraça, e o performer e ativista Paulinho Fluxus.

Obviamente é impossível resenhar aqui todas as questões que apareceram nessas noites de debates. Mas certamente uma das percepções mais evidentes que tive a partir daí foi a existência de um grande dissenso no interior daquilo que chamamos inicialmente de movimentos ativistas. O que não foi exatamente uma surpresa, pois, como já estava afirmado no título do debate, a questão urbana era trazida à público através da noção de fricção, isto é, de conflito.

Nesse encontro havia grande heterogeneidade: grupos de arte urbana, de teatro-dança, de urbanismo tático, grupos feministas, grupos ligados a movimentos negros e ativistas políticos voltados à denúncia de vulnerabilidade social em espaço urbano.

E não só havia discordâncias quanto ao uso e ao sentido das palavras "grupo" e "coletivo", por exemplo, mas também claras demarcações de diferenças entre posicionamentos de grupos ligados à arte e ao urbanismo, de extração predominantemente universitária e de classe média, e de grupos ligados às questões raciais, de gênero e mais diretamente sociais, vinculados às periferias.

ELITISMO

Em particular, foi criada uma situação aguda no momento em que se acusou de elitistas movimentos como o Parque Augusta, A Batata Precisa de Você, ou as várias correntes que debatem em São Paulo a transformação do Minhocão em parque. Pois seriam, todos esses, movimentos de classe média intelectualizada que se preocupa apenas (ou prioritariamente) com as áreas centrais da cidade, e não com as periféricas.

Nessa hora, uma das pessoas presentes, que se identificou como um morador da periferia, observou que o espaço público é em essência um problema do centro, e não da periferia, pois lá, segundo sua opinião, as pessoas usam muito mais as ruas como espaço de convivência cotidiana, independentemente de isso ganhar ou não o nome de "público".




Diante disso, mesmo reconhecendo os riscos de transformar em virtude aquilo que é resultado da carência, é preciso admitir que questões oportunas se desdobram a partir dessa discussão.

É verdade que a onda ativista atual no Brasil, conectada à agenda das primaveras e dos movimentos "occupy" pelo mundo, incide prioritariamente sobre espaços centrais das cidades. O mesmo pode ser observado nos casos do Ocupe Estelita, no Recife, e da Praia da Estação, em Belo Horizonte, por exemplo. Mas nem por isso podem (ou devem) ser considerados necessariamente elitistas, como se centro e periferia fossem lugares (e conceitos) mutuamente antagônicos.

É evidente que os espaços centrais das grandes cidades –que de fato associamos mais à noção canônica de "espaço público"– deveriam ser lugares de convivência e de autorreconhecimento não apenas dos moradores da região (aliás, muitos deles de classe baixa), mas dos habitantes da cidade como um todo.

Muito a propósito, em um lugar como a Cidade do México, quase todos os parques e praças do centro são desprovidos de grades e ficam lotados de pessoas e de tendas de comércio informal nos finais de semana, já que o preço do transporte público lá é sensivelmente baixo.

Um segundo ponto importante que decorre daquela referida discussão é a necessidade de precisar melhor o sentido dessas ações ativistas, e, ao lado disso, o próprio conceito de espaço público.

Diferentemente da maioria dos movimentos sociais surgidos no Brasil no período da redemocratização, ligados em geral à pauta da habitação social e voltados para a construção de uma política de Estado, esses movimentos atuais ampliam a agenda de discussão nas direções da reivindicação do transporte e dos espaços públicos, pressionando os órgãos do Estado, mas, ao mesmo tempo, agindo com certa autonomia em relação a eles. Isto é, guardam uma relativa distância da chamada política oficial. Por trás disso estão, a meu ver, algumas questões de fundo.

RESSACA

Em primeiro lugar, esses movimentos surgem, no início da década atual, em meio a uma ressaca geral com relação às promessas da política oficial. O horizonte otimista descortinado no início do milênio, com a criação do Estatuto da Cidade e do Ministério das Cidades, tendo como baliza a perspectiva de reforma urbana, se mostrou decepcionante.

Ao mesmo tempo, e de forma contrastante, a inclusão de classes mais baixas no círculo do consumo durante esse período, somada às manifestações de junho de 2013 e às reais ações urbanas voltadas ao interesse coletivo na cidade de São Paulo, durante a gestão Fernando Haddad, deram à pauta urbana um sentido de máxima urgência.

Assim, atuando sobre o espaço urbano muitas vezes através do uso cotidiano, sem uma agenda política necessariamente clara, o que muitos desses grupos ativistas parecem querer promover, segundo a minha impressão, é o acesso público e democrático a espaços mais bem qualificados e a serviços básicos de infraestrutura, como ônibus, trem e metrô.

E, se historicamente o conceito de espaço público nasce, na Grécia Antiga, encarnando a dimensão política em oposição total aos espaços da vida privada –a política como prática da cidade, "polis", contraposta à economia como administração doméstica, "oikos"–, a atitude de muitos coletivos ativistas que hoje usam e ocupam temporariamente praças e outros espaços de cidades pelo mundo parece voltar-se menos a esse horizonte canonicamente público do que à noção de "comum" ("common"), tal como definem Antonio Negri e Michael Hardt.

Estaríamos, assim, menos próximos da praça em que se realiza o julgamento de Sócrates do que das ruas de bairros periféricos de São Paulo, ao mesmo tempo violentas e formadas por redes comunitárias de sociabilidade e comércio informal.

O "comum" supõe uma aproximação ao espaço público que não exclui a dimensão privada. Não me refiro aqui às políticas de Parcerias Público-Privadas, mas à ação, transformação, ocupação e eventual gestão temporária dos espaços públicos por grupos da sociedade civil, em geral coletivos e autogestionários.

Nesse sentido, não se espera mais por uma ação paternalista do Estado, feita de cima para baixo, mas deseja-se construir coletivamente uma vida pública de forma mais horizontal e colaborativa. Daí a generalização da expressão "apropriação do espaço público", referida ao uso temporário desse espaço, e não à sua posse.

Um dos maiores paradigmas do "common" é o Zuccotti Park, em Nova York, onde em 2011 aconteceu o movimento Occupy Wall Street. Ocupação que só pôde ocorrer porque aquele lugar não era exatamente público, e sim um espaço privado de uso público (uma "bonus plaza"), que, por isso, não poderia ser invadido pela polícia.

Com efeito, ainda que as ações concretas de urbanismo tático e resistência a projetos de privatização de espaços de interesse público promovidas por esse grupos ativistas sejam pontuais e insuficientes diante da escala e complexidade das grandes capitais brasileiras, elas são formadoras de uma nova e importante consciência cidadã. "A cidade é nossa, ocupe-a", diz o slogan do Ocupe Estelita, ao lado de outro chamado "Recife cidade roubada". Queremos as cidades de volta. Não por seus valores de troca, mas por seus valores de uso.

GUILHERME WISNIK, 43, é professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto na FAU-USP e vice-diretor do Centro Universitário Maria Antonia.

Fonte: Folha de S.Paulo
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