POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Quinta feira, 22 de abril. Oito horas da manhã. Toca o telefone. Atendo. Ligação interurbana. É de Manaus. A voz de alguém que não conheço geme, angustiada, do outro lado da linha, pedindo socorro:
- Estou agorinha presenciando um assassinato daqui da janela da minha casa, no Parque Dez!! Eu, minha mulher e minha netinha!!!
Alarmado, aconselho que chamem a polícia. Justifico minha omissão:
- Moro no Rio de Janeiro. Não posso fazer nada.
- Pode sim! Pode escrever. Escreve. Avisa que estão matando o Mindu. Denuncia o crime. Dá o nome dos bandidos - segredou a voz, num cochicho, como se temesse ser ouvida.
Depois, continuou descrevendo, lance por lance, o que via através da janela indiscreta. Narrativa tensa, cheia de suspense, como num filme de Hitchcock. Transcrevo o que ouvi, na esperança de que os criminosos sejam identificados e punidos. Duvido, no entanto, que a violência contra desconhecidos, hoje tão banalizada no Brasil, possa comover alguém.
Afinal, quem é que está preocupado em saber se um tal de Mindu está morrendo num bairro de Manaus? Azar o dele! Se a vítima fosse uma celebridade, vivesse na Islândia, se chamasse Eyjafjallajoekull e cuspisse fogo, vapor e fumaça preta, zoneando assim o tráfego aéreo, o mundo inteiro se agitaria. Mas Mindu, o inofensivo? Quem é Mindu no jogo do bicho? Ninguém sabe.
Parque Zero
Ninguém, vírgula! Os manauaras sabem. Conhecemos o Mindu, o maior igarapé da área urbana de Manaus. Ele nasce numa floresta próximo ao Jardim Botânico Municipal e atravessa toda a zona leste da cidade, num trajeto de mais de 20 quilômetros, correndo por um leito pedregoso. Vai se juntando a outros igarapés até desaguar no Rio Negro. Durante décadas, abrigou muitas espécies diferentes de pássaros, insetos, mamíferos, répteis, tartarugas e plantas e deu água fresca aos abundantes buritizais que, em troca, lhe proporcionavam sombra.
Sombra e água fresca: o Mindu era isso. Era quase um paraíso. Em uma de suas margens, terminava a cidade, em outra começava a floresta. De um lado, o bicho urbanóide. De outro, o bicho do mato. Foi ali, naquela região de fronteira, que suas águas foram canalizadas, em 1938, para formar uma piscina natural. O balneário, onde aos domingos as famílias faziam piquenique, foi batizado como ‘Parque Dez de Novembro’.
Hoje, poucos sabem as razões do nome. Era uma homenagem à data do golpe. Um ano antes, 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional, suprimiu as liberdades democráticas, instaurou censura férrea e prendeu e torturou os opositores. Dessa forma, o interventor no Amazonas, Álvaro Maia, puxava o saco do criador do Estado Novo.
Durante algum tempo, o Parque Dez e a boate Acapulco foram os últimos bastiões urbanos. Dali, saía uma estradinha de terra, carroçável, conhecida como V-8 (atual Efigênio Sales), acompanhando o sentido do igarapé, ao longo do qual se situavam pequenas chácaras transformadas em balneários ou ‘banhos’, como a gente chamava. Havia, entre tantos outros, o ‘Pecos Bill’, o ‘Tucunaré’ e ‘As Pedreiras’, da dona Dirce Ramos, viúva rica, que o repassou aos padres redentoristas.
Suas águas, onde meu irmão de dois anos morreu afogado, eram límpidas, cristalinas e potáveis. Mas depois do golpe militar de 1964, a censura impediu criticas ao modelo econômico dominante, que se lixava para o meio ambiente. Foi quando a Companhia Habitacional do Amazonas (COHABAM) construiu com recursos federais o conjunto residencial Castelo Branco - nome dado em homenagem ao marechal ditador. Manaus tinha, então, uns 300 mil habitantes. Aí começou a lenta agonia do Mindu.
Se o Mindu falasse
De lá para cá, a cidade cresceu. A mata foi devastada. Dezenas de novos bairros surgiram sem uma política ambiental e de saneamento básico. As residências passaram a despejar seus dejetos no leito do igarapé, transformando-o num fétido esgoto a céu aberto. A feira do bairro Amazonino Mendes joga nele todo seu lixo. A criação, em 1992, do Parque Municipal do Mindu, como área de interesse ecológico, foi uma tentativa de preservar o último refúgio verde do bairro. Mas o Mindu, “um rio que passou em minha vida”, já estava ferido de morte.
Para tentar salvá-lo, o então prefeito de Manaus Serafim Correa (PSB) aprovou, em 2007, o Projeto de Revitalização do Mindu, com a criação de estações de tratamento de esgoto e de um corredor ecológico. O objetivo era, de um lado, evitar que as suas nascentes fossem ocupadas, e de outro, transformar em área de lazer o espaço do parque. Pouco antes de sair da Prefeitura, garantiu, em 2008, um contrato de 128 milhões de reais, para realizar a obra pelo PAC- Plano de Aceleração do Crescimento.
No entanto, o atual prefeito de Manaus, Amazonino Mendes (PTB - vixe, vixe!) engavetou o corredor ecológico e decidiu substituí-lo pela construção de uma pista às margens do Mindu, seguindo o exemplo da Marginal do Tietê, em São Paulo. O Ministério Público Federal entrou com ação na Justiça, tentando recuperar o projeto original e, com ele, uma sobrevida para o Mindu. Até hoje, ninguém sabe o destino dos recursos, porque “desde que assumiu, Amazonino não divulga os gastos da Prefeitura”.
De qualquer forma, o crime que o leitor viu, de sua janela, ao lado da esposa e da netinha, quando se celebrava o Dia Mundial da Terra, dá a dimensão de que a estupidez humana não tem limites. Ele viu tratores, caminhões e caçambas trafegando pelas ciclovias, pelos gramados e pelo calçadão, que agora servem de lixeira para entulhos das obras, com muita sujeira, lama, poeira e lixo. Parece uma praça de guerra. Tudo em nome da especulação imobiliária e do lucro rápido.
Com 66 anos, aposentado, a testemunha do crime não se conforma com a agressão ao Parque, onde podia passear antes com a neta. Ele fotografou o processo criminoso: são mais de duzentas fotos nos últimos anos. O Mindu, hoje, como Itabira, é apenas um retrato na parede. Mas como dói! Nós e nossos filhos pagaremos caro por esse crime, se o poeta Thiago de Mello tiver razão, quando diz que não é só quem brinca com fogo que se queima. Quem polui a água, acaba se afogando no lodo, na cinza e na merda.
Mindu´u em língua guarani, significa mastigar, comer devagar, ruminar. O Mindu, em sua agonia, está ruminando. O quê? A reposta é dada pelo poema abaixo de Javier Heraud (1942-1963), o poeta-guerrilheiro peruano, que morreu aos vinte anos, baleado numa balsa no rio Madre de Dios, afluente do Beni, que deságua no nosso rio Madeira. Dois anos antes de morrer, aos 18 anos, publicou seu primeiro livro - El rio. Reproduzo aqui para os leitores um pequeno trecho do poema.
El rio
1
Yo soy un río,
voy bajando por
las piedras anchas,
voy bajando por
las rocas duras,
por el sendero
dibujado por el viento.
Hay arboles a mi
alrededor sombreados
por la lluvia.
Yo soy un río,
bajo cada vez más
furiosamente,
mas violentamente
bajo
cada vez que un
puente me refleja
en sus arcos.
Yo soy un río,
voy bajando por
las piedras anchas,
voy bajando por
las rocas duras,
por el sendero
dibujado por el viento.
Hay arboles a mi
alrededor sombreados
por la lluvia.
Yo soy un río,
bajo cada vez más
furiosamente,
mas violentamente
bajo
cada vez que un
puente me refleja
en sus arcos.
2
Yo soy un río
un río
un río
cristalino en la
mañana.
A veces soy
tierno y bondadoso. Me
deslizo suavemente
por los valles fértiles,
doy de beber miles de veces
al ganado, a la gente dócil.
Los niños se me acercan de
día,
y de noche trémulos amantes
apoyan sus ojos en los míos,
y hunden sus brazos
en la oscura claridad
de mis aguas fantasmales.
Yo soy un río
un río
un río
cristalino en la
mañana.
A veces soy
tierno y bondadoso. Me
deslizo suavemente
por los valles fértiles,
doy de beber miles de veces
al ganado, a la gente dócil.
Los niños se me acercan de
día,
y de noche trémulos amantes
apoyan sus ojos en los míos,
y hunden sus brazos
en la oscura claridad
de mis aguas fantasmales.
3
Yo soy el río.
Pero a veces soy
bravo
y
fuerte,
pero a veces
no respeto ni la
vida ni la
muerte.
Bajo por las
atropelladas cascadas,
bajo con furia y con
rencor,
golpeo contra las
piedras mas y mas,
las hago una
a una pedazos
interminables.
Yo soy el río.
Pero a veces soy
bravo
y
fuerte,
pero a veces
no respeto ni la
vida ni la
muerte.
Bajo por las
atropelladas cascadas,
bajo con furia y con
rencor,
golpeo contra las
piedras mas y mas,
las hago una
a una pedazos
interminables.
4
Los animales
huyen,
huyen huyendo
cuando me desbordo
por los campos,
cuando siembro de
piedras pequeñas las
laderas,
cuando
inundo
las casas y los pastos
cuando
inundo
las puertas y sus
corazones,
los cuerpos y
sus
corazones.
Los animales
huyen,
huyen huyendo
cuando me desbordo
por los campos,
cuando siembro de
piedras pequeñas las
laderas,
cuando
inundo
las casas y los pastos
cuando
inundo
las puertas y sus
corazones,
los cuerpos y
sus
corazones.
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