Revista (MEIA UM) - A dura vida de quem vai de bicicleta.

A revista (MEIA UM), de Brasília, traz este neste mês de novembro (2012) uma edição especial sobre a vida de quem pedala nas cidade, relatando desafios e as vantagens de se utilizar a bicicleta como meio de transporte.



Pedalar é preciso para termos trânsito não tão tumultuado, menos emissão de gases tóxicos e mais saúde, mas vale o sacrifício? Nossa repórter acha que sim, mas ainda prefere o carro.

Texto Paula Oliveira paulaoliveira@meiaum.com.br

Parecia simples. Minha missão era ir de casa para o meu local de trabalho de bicicleta. Eu teria que começar do zero. Nem bicicleta eu tinha e precisaria pegar uma emprestada, mas não me pareceu complicado cumprir a tarefa proposta em reunião de pauta da meiaum. A distância não é grande – do fim da Asa Norte ao início do Lago Norte – e o trânsito é relativamente tranquilo por estar sempre no contrafluxo. Sedentária que sou, temia o cansaço, mas isso eu poderia resolver saindo bem mais cedo para ter a liberdade de ir parando no meio do caminho. Passada a empolgação inicial comum de quando somos desafiados, parei para pensar o que seria essa experiência na prática. A saga começou em julho.

O discurso comum dos defensores da bicicleta como meio de transporte não é simplesmente ambiental. Há argumentos para quase tudo: ela ocupa menos espaço, é um veículo mais lento, não precisa de combustível e dá liberdade para o condutor ir e vir sem depender de equipamentos públicos. É o tal do Direito à Cidade. “Uma pessoa que mora em Samambaia não pode ir ao Plano Piloto à noite se depender de ônibus ou de metrô”, exemplifica o servidor público, ciclista e defensor do Direito à Cidade Renato Zerbinato, de 35 anos. Se não tiver carro, precisa prestar atenção no horário para não perder a condução. De madrugada, nada funciona.

Então está bem, comprei o discurso. Um carro a menos nas ruas já faria diferença. Além disso, eu poderia me empolgar com a experiência e, quem sabe, me tornar ciclista. Tenho costumes típicos de brasilienses, como não andar a pé nunca. Nem mesmo para percorrer distâncias curtíssimas. Mas eu poderia diminuir o uso do meu carro e contribuir um pouco para a preservação do planeta. E contribuir também para a minha tão desejada boa forma, mas essa é outra história!

“A convenção mundial é de que o transporte por bicicleta seja feito em percursos máximos de sete quilômetros”, diz Zerbinato. Mais do que isso fica cansativo e demorado. Em média, se gastam 30 minutos nessa distância. O pedestre caminha aproximadamente seis quilômetros por hora. De bicicleta, a velocidade dobra. Mesmo dentro do DF, que tem o território pequeno, muita gente que depende de ônibus ou enfrenta engarrafamentos gasta mais do que meia hora para chegar ao trabalho.

Comprei a bicicleta (sim, de verdade!). Tive dificuldade de encontrar a ideal. Pesquisei e vi que há o tamanho certo para cada pessoa, mas as personalizadas são caras demais. A que eu vi sairia no mínimo por R$ 1,2 mil, fora os acessórios. Como eu estava começando, preferi não fazer um investimento tão alto. Mesmo assim, gastei pouco mais de R$ 400. A que comprei ficou grande para mim. O ideal é encostar os pés no chão quando no sentado no selim. Eu fico na ponta dos pés. Mas, tudo bem, eu me acostumaria.

Resolvi treinar antes de pensar em pedalar para o trabalho. O medo foi grande e a vergonha também. Dizem que ninguém se esquece de como é andar de bicicleta. Eu tinha me esquecido. O segundo dia foi mais tranquilo. Estava mais segura. Fiz isso algumas vezes e comecei a ver na prática quais seriam as dificuldades para adotar o hábito, ou pelo menos cumprir a pauta.

Pela ponte, eu não vou

Enfrentar as ruas cheias de carros, motos e pedestres era, e continua sendo, uma das minhas maiores preocupações. Para Zerbinato, que tem esse costume há mais de dez anos, as vias de Brasília são perfeitas para transitar de bicicleta. “Para mim, não vejo necessidade de adaptação”, garante. Mas, quando o filho de 12 anos pedala com ele, o servidor público prefere as calçadas. “É perigoso”, admite. E eu? Não tive coragem de ir de uma quadra residencial a outra sem me desgarrar do caminho que faria a pé. Se eu soubesse na época que existe uma organização chamada Bike Anjo (www.bikeanjo.com.br), em que voluntários ajudam iniciantes a enfrentar o trânsito, talvez tivesse conseguido.

A socióloga Renata Florentino, de 28 anos, recorreu ao serviço para se iniciar na vida de ciclista. Precisou de ajuda para sair do Sudoeste, onde mora, para a Asa Sul, onde trabalha. Ainda tem medo, admite. “Pedalo só há uns meses, ainda estou me adaptando, mas está dando certo.”

Zerbinato é um voluntário, mas, mesmo se eu tivesse a companhia dele, acho que minha missão teria furado. O fato de eu ter que passar pela Ponte do Bragueto atrapalha. “Não aconselho porque é muito perigoso”, sentencia. E olha que trabalho a apenas sete quilômetros de casa. Estaria dentro da convenção mundial e gastaria apenas uns 15 minutos a mais para chegar. Mas o conselho de um Bike Anjo é sagrado. Sem contar que, para quem tem medo de circular no Plano Piloto, seguir para uma estrada de velocidade alta não seria coerente. Missão não cumprida.

Preciso de fôlego

Já ouvi muito que a endorfina, produzida quando fazemos exercícios, traz sensação de prazer. Eu mesma nunca senti isso, mas é o que dizem. Pedalar por meia hora, para quem não é atleta, é uma malhação. Eu tentei, juro, mas depois desse tempo todo em cima da bicicleta eu não produziria uma só linha de texto. Queria ajudar a melhorar o trânsito, mas preciso chegar ao trabalho disposta.

Enquanto estou com preguiça dos meus sete quilômetros, o garçom Afonso Pacheco Portela, de 43 anos, percorre o quíntuplo para o trabalho. É um entusiasta da bicicleta. Em casa, tem cinco. Um carro e uma moto também, mas os xodós são as “magrelas”. Trabalha há nove anos como copeiro em uma empresa no Setor Bancário Norte e mora em Ceilândia. Desde os primeiros meses no emprego, vai de bicicleta. “De ônibus é um sacrifício.” Além de lotados, não estão em bom estado. “Sem contar o estresse de ficar no ponto de ônibus esperando a boa vontade dos motoristas em parar”, reclama. Como já pedalava por esporte, viu que não haveria problema em adotar a bicicleta como meio de transporte também.

São nove anos de persistência. O garçom tinha mais ou menos a minha idade quando tomou essa decisão e garante que não é preciso muito preparo para enfrentar o caminho pedalando. “Em pouco tempo você se acostuma”, incentiva. Sei. Para ele, é fácil. É maratonista e também participa de competições ciclísticas. Portela diz que o pior dos 70 quilômetros que ele percorre por dia é o trânsito pesado (ele passa pela Via Estrutural), a sujeira no asfalto, a falta de educação de motoristas e, claro, as condições da via.

Quero chegar viva

Qualquer pedregulho ou peça de veículo no chão representa grande perigo para o ciclista. Se o motorista precisa ficar atento a milhões de coisas enquanto dirige, quem está de bicicleta pode dobrar o grau de preocupação. “É complicado”, reclama o garçom maratonista. Ele usa no dia a dia um pneu próprio para competições de mountain bike para diminuir a possibilidade de furar com cacos de vidro, comuns no meio do caminho. “Acho que as pessoas desistem da bicicleta por causa dessas pequenas dificuldades que, no fim das contas, se tornam grandes.” Ele mesmo desiste quando está chovendo. A falta de ciclovias agrava o problema. Quem sabe isso se resolva quando o governo do DF entregar os 421 quilômetros de ciclovias que promete construir até 2014? Ainda assim, para ele, circular de bicicleta compensa.

O Código de Trânsito reconhece a bicicleta como meio de transporte. É chamado veículo não motorizado e precisa seguir regras. Uma delas, com a qual nunca me conformei, é andar sempre na mesma direção dos carros. Fico insegura. De costas para os veículos, não vejo como está o trânsito, quem chega perto. Mas a norma segue uma lógica física. Se a colisão se der de frente, as velocidades se somam e o estrago é maior. Outra regra é que o ciclista deve dar preferência ao pedestre e evitar as calçadas. As ciclovias que estão sendo construídas na cidade são de uso misto (pedestres e ciclistas), e a preferência é de quem está a pé. Segundo o Código de Trânsito, na falta de ciclovias ou acostamentos, lugar de bicicleta é na via. “Inserir o ciclista no trânsito é difícil porque nem o motorista vê a bicicleta nem o ciclista vê o carro”, diz Zerbinato. A impressão que dá é de que em qualquer lugar a bicicleta é um incômodo. Os motoristas não a querem nas vias e, na calçada, representam risco para os pedestres.

Solteira e sem filho, Eliz Pessoa, de 35 anos, é estudante de pedagogia e trabalha com produção de eventos. A insegurança dela vem toda do trânsito mesmo. Se os motoristas já respeitam pouco o ciclista uniformizado, imagine aqueles que circulam com roupas do dia a dia? Talvez a roupa e os equipamentos imponham um pouco mais de respeito, mas ela não tem nada disso. Prefere andar livre, como nos filmes europeus ou nas novelas escritas por Manoel Carlos. É errado, sim. Precisa de campainha, de sinalização noturna dianteira, traseira, lateral e nos pedais e de espelho retrovisor do lado esquerdo, além do capacete e de roupas claras e chamativas. É o que diz o Código de Trânsito. Mas, se não for obedecido, não tem punição. Há previsão de multas, mas não existe regulamentação para que sejam aplicadas. O preço mais alto é mesmo a exposição em caso de acidente.

Para a publicitária Lia Tavares, de 32 anos, a segurança é imprescindível. Ela tem tudo. Até a sapatilha especial que se encaixa no pedal. A bicicleta está na vida dela desde a adolescência. Ela não quer poluir ainda mais o planeta e diz que sempre teve essa postura mais consciente. E a bicicleta faz parte dessa cultura que adotou como estilo de vida. Ainda jovem, fazia tudo de bicicleta: faculdade, estágios, festas, cinema, shopping. Tinha resistência em comprar um carro, mesmo quando passou a ter condições financeiras.

Além disso, nunca teve paciência para o trânsito. “Bom é pedalar no meio dos carros parados no engarrafamento e sentir que você não precisa daquele estresse para chegar a algum lugar”, reflete. Lia é natural ao extremo. Mora em uma área rural perto do Lago Norte chamada Córrego do Tamanduá. Houve uma época em que abandonou a bicicleta como veículo para trabalhar e adotou o caiaque. Sim, a casa dela é perto do Lago Paranoá e o lugar em que trabalhava também. Então, todos os dias ela remava de um lado para o outro. Precisava de 15 minutos e esse tempo servia de meditação, de relaxamento.

Agora mãe de duas crianças – uma de 4 e a outra de 2 anos –, precisou comprar um carro. Foi chocante, como ela mesma descreve, mas não havia jeito. Morar no Lago Norte, trabalhar na Esplanada dos Ministérios e ter duas filhas para levar à escola, tudo de bicicleta, não é prático. Nem mesmo para Lia, tão dedicada à preservação ambiental.
Quando quer fazer compras, a bicicleta também não é mais viável. Ela tem uma família de quatro pessoas e precisa carregar muita coisa. Se precisa resolver alguma pendência em órgãos públicos também não pode ir de bicicleta. Geralmente eles não têm estacionamentos próprios, apesar de existir uma lei distrital que os obriga a instalar bicicletário (Lei 4.800, de março de 2012). Só que uma volta pelo Setor de Autarquias Sul já denuncia que a regra não é cumprida. Eles têm dois anos para se adaptar. Enquanto isso, se não há bicicletário, não há solução. O Departamento de Trânsito do DF não tem nenhuma orientação sobre onde o ciclista deve parar.

Quando chove, pior ainda. Como vai ficar o dia inteiro com a roupa molhada? Mesmo que tenha como se trocar, é um transtorno. Certa vez, foi impedida de entrar na garagem de um shopping por estar de bicicleta. Hoje, os shoppings já perceberam a falha e alguns oferecem estacionamento para os ciclistas. Eles pagam como motoristas.

“Os impedimentos são muitos, mas vale a pena tentar”, garante a publicitária. Hoje não pode levar a vida que tinha quando adolescente, mas o gosto pela bicicleta e a convicção de que é possível ter uma vida mais harmoniosa com a preservação do meio ambiente não a deixaram abandonar o hábito tão facilmente. Uma ou duas vezes na semana, Lia vai trabalhar de bicicleta. A operação é trabalhosa, mas ela diz que parece mais complicada do que realmente é. Ela sai de casa de carro, com as duas crianças, o material da escola, uma mochila com roupa para trabalhar, água e, claro, a bicicleta no porta-malas. Deixa as meninas na escola e segue de carro até uma quadra da Asa Norte. Para o veículo, monta a bicicleta e segue para a Esplanada dos Ministérios. Ela demora cerca de 30 minutos e diz que esse seria o tempo que perderia se estivesse de carro. “O tempo que levo para chegar pedalando compensa o que perco procurando vaga para estacionar”, calcula. Na volta, a mesma coisa. Só não busca as crianças na escola. O marido dela faz isso mais cedo.

Onde vou to mar banho?

Por estar ao ar livre, o ciclista tem contato maior com a poluição liberada pelos veículos – além de toda a poeira da rua, do vento forte, do sol intenso, da chuva, do frio. Enfim, está sujeito a tudo. Chegar limpinho e cheiroso? Pode se esquecer disso. Portela, o garçom ciclista, usou, por quase uma década, o banheiro do shopping ao lado do prédio em que trabalha para tomar banho antes de iniciar o expediente. Tudo precisa ser bem planejado. No armário do trabalho, guarda os produtos de higiene e carrega a toalha na mochila – acessório indispensável. Uma trabalheira! Para conseguir liberação, precisou conversar com o pessoal da administração do centro comercial. Não foi fácil. Neste ano, depois de muito insistir, Portela foi autorizado a tomar banho no edifício em que trabalha. Ele e mais uns três ou quatro têm o mesmo hábito. Mas nada de bagunça! Essa foi a exigência da administração. Cada um chega em um horário e toma o seu banho. Outro pré-requisito: precisa ser homem. Não há espaço para as mulheres, pelo menos nesse prédio.

Ao me preparar psicologicamente para o desafio de pedalar pela cidade, o primeiro problema que veio à minha cabeça foi o cansaço. O segundo foi justamente a higiene. Ter que carregar uma mochila cheia de roupas, acessórios para o banho, secador de cabelo e sapato não seria prático para mim. Onde eu trabalho não há chuveiro. Não por má vontade da empresa, mas por falta de infraestrutura mesmo. Nem no prédio que abriga a agência há chuveiro disponível. Talvez, se eu negociasse por nove anos, como fez Portela, eu conseguisse. Mas até lá chegaria ao trabalho suada e incomodada.

É aquela velha história do que deve vir primeiro: a consciência individual de adotar um meio de transporte alternativo ou a consciência coletiva de preparar os ambientes para incentivar as pessoas a adotarem hábitos mais saudáveis para elas, para a cidade e para o planeta?

Eliz Pessoa diz que isso não é problema. Para ela, é fácil. Ela jura que não sua. Acorda e veste roupas confortáveis para pedalar, chega ao trabalho um pouco antes e troca tudo. Como não transpira, não toma banho. “Não é qualquer empresa que tolera que o funcionário chegue com roupa esporte e use as dependências para se trocar, mas com jeitinho a gente acaba conseguindo a liberação.” Quando a entrevistei, em agosto, tinha acabado de trocar de emprego e ainda não sabia se teria essa liberdade. Mas ela dá um jeito e insiste em usar a sua velha bicicleta para ir para lá e para cá.

E se o pneu furar?

O hábito de Eliz começou por necessidade. Estudante e sem dinheiro, viu que seria viável fazer o trajeto de casa para a faculdade de bicicleta. E ela gostou da experiência. “Via aqueles filmes europeus em que as pessoas pedalam felizes e bucólicas pelas ruas e eu queria aquilo para mim também”, conta.

Talvez por isso abomine uniformes de ciclistas e grupos de pedal. Prefere ser livre e pedalar sem compromisso com nada, nem com ninguém. “Não sou ciclista, sou biciclista”, define-se.

Hoje teria condições de utilizar outro meio de transporte, mas persiste. Para Eliz, pedalar é um prazer, apesar dos obstáculos. Se um pneu fura, por exemplo, é um problema. Se de carro já é motivo de chateação, de atraso e de trabalho sujo, de bicicleta é pior. A primeira dificuldade é encontrar borracheiro por aí. Sempre tem um por perto, mas não um que conserte pneu de bicicleta. Se alguma peça se quebra no meio do caminho, também complica. Acaba que todo ciclista, ou biciclista, é um pouco mecânico.

A sorte de Eliz é se ela encontrar um colega do pedal como Portela, o garçom que sai de Ceilândia todos os dias para trabalhar no Setor Bancário Norte. Ele costuma carregar ferramentas para ajudar os ciclistas com dificuldades. Só que ela tem uma vantagem: todo o seu percurso é dentro do Plano Piloto. Não enfrenta uma autoestrada como Portela. Assim fica realmente mais fácil encontrar ajuda.

Ela não tem carro. Então, tudo é feito pedalando. Até as compras de casa. A mãe a acompanha. Cada uma na sua bicicleta. E as compras precisam ser picadas. Não dá para fazer o mercado do mês, por exemplo. Se se empolgarem, o peso fica insuportável e o que já não é prático fica ainda pior. “Já diminuímos o volume porque ficávamos com muitas dores. Agora acertamos a quantidade, eu acho”, diz. E como já escrevi, Eliz tem sorte. Ela mora em um lugar em que o acesso ao comércio é facilitado. Tem tudo por perto. Então não é um sacrifício tão grande assim, na avaliação dela. Mas eu acho que ir várias vezes ao mercado por não conseguir carregar todas as compras não é tão legal assim.

Eliz vai de bicicleta até para festas e shows. Diz que não vai produzida porque prefere o conforto. “Às vezes até tenho vontade de me vestir de mulherzinha, colocar um vestido bonito, arrumar os cabelos, mas de bicicleta não dá.” Levar mochila para trocar de roupa no trabalho até vai, mas em uma festa fica difícil. O jeito é se conformar e se divertir conforme as possibilidades. Chegar perto do palco, no caso de shows, não dá. Ela não se sente segura em prender a bicicleta em um poste qualquer. Tem medo de que a levem embora. Então, fica pelos cantos, nas áreas mais vazias para não ter problemas. Se quiser ir a dois eventos em uma mesma noite, também não dá. Ainda mais se forem distantes um do outro.

Já voltou de festas de madrugada sozinha. O problema é a segurança. Na bicicleta, a pessoa fica mais vulnerável a tudo. Medo ela não tem, mas procura não repetir os caminhos com frequência. Às vezes percorre distâncias mais longas, mas prefere assim. “De qualquer forma, nunca fui abordada por ninguém. Quando estou em movimento, me sinto segura.”

Uniforme pra quê?

Como trabalha com produção de eventos, Eliz precisa estar vestida com trajes sociais. Salto alto e tudo o mais. Claro que não vai pedalar assim. Coloca tudo na mochila e segue viagem. No trabalho, troca tudo. Levar vestido e sapato é fácil. Quero ver no dia em que estiver frio e precisar enfiar calça jeans, botas, casaco. Seria muito peso para carregar.

A socióloga Renata, por sua vez, prefere enfrentar o pedal com a roupa com que vai trabalhar. Renato Zerbinato também. Mas ele é homem e fica mais fácil. Como é assessor de uma deputada federal, às vezes precisa ir de terno. “Não troco nada, nem carrego nada, vou do jeito que estiver”, diz, desprendido. A única adaptação é dobrar a perna da calça para não correr o risco de rasgá-la no pedal. Já perdeu algumas peças assim.

A publicitária Lia faz questão de pedalar com roupas de trabalho. Acredita que assim os motoristas terão mais consciência de que ela é uma pessoa comum, que vai trabalhar e que precisa de espaço na pista. “Tenho vontade de fazer uma placa dizendo que sou mãe e que preciso chegar em casa com segurança.”

Lia é veterana, mas Renata começou a pedalar no meio do ano. Antes, não sabia nem se conseguiria se equilibrar nas duas rodas. Assim como eu. Comprou uma bicicleta dobrável e do tamanho ideal para ela. Sorte a dela! E adaptou o novo veículo à sua personalidade. Enfeitada com flores, cesto de palha e adesivos do tipo “Um carro a menos na rua”, a bicicleta charmosa é reconhecida de longe. Nada de roupas com cores fluorescentes, capacete futurista e coletes refletores. Renata tem estilo. Ela vai de vestido!

Quando a vi pedalando assim, quase saí correndo, também de vestido, para alcançá- la. Queria perguntar para alguém como é ser ciclista e continuar se vestindo de forma feminina. Para ela, não tem problema. “Comprei um acessório em um site gringo que é basicamente um elástico que colocamos na coxa com uma presilha para segurar a saia; assim, fico protegida das rajadas de vento”, explica. Aí, sim, já fiquei mais feliz. No lugar do colete, ela usa uma faixa, como de miss, também refletora. Sobra charme, mas falta o capacete.

Depois que pedalo, meu cabelo está todo bagunçado e duro. Perguntei como Renata faz para manter o dela arrumado. Ela disse que algumas mulheres usam lenço para proteger os fios do vento e da poeira, mas ela prefere apenas prendê-los. Equipamento de segurança? Somente a faixa de miss para pedalar à noite.

Sem frescura, até daria

Vendo as soluções e as justificativas dos ciclistas com quem conversei, entendi que eleger a bicicleta como meio de transporte não é muito simples. Faz bem para o corpo, para a natureza e para a cidade, mas não faz bem para a minha praticidade. Talvez, em uma cidade adaptada, com espaço para as bicicletas, para os carros e para os pedestres, com estacionamento e segurança para todos, com infraestrutura para receber quem optou por pedalar, eu pudesse abrir mão da comodidade do carro e das minhas frescuras para entrar para o grupo dos ciclistas.

De que adianta eu comprar uma bicicleta, se, quando chego ao trabalho, não tenho estrutura para me apoiar? Não preciso nem chegar a tanto. Na minha experiência como ciclista, dei uma volta perto da minha casa. Depois de uma hora pedalando, fiquei com fome e quis comer em um restaurante por perto. Quando cheguei, vi que não teria onde deixar a minha Caloi. A solução foi pedalar até a minha casa, pegar o carro e voltar ao restaurante. “Acredito que, se o governo investisse mais em estacionamento para bicicletas e menos em ciclovias, por exemplo, o estímulo seria bem maior”, avalia Renato Zerbinato. E eu concordo. Os 600 quilômetros de ciclovias, ainda que ligadas, acredito eu, vão estimular a prática de atividade física. Não de locomoção por meio da bicicleta.


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Sobre Keyce Araújo

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1 comentários:

  1. Presenciei alguns de meus momentos (prazeres e dificuldades) na companhia da magrela.
    Excelente matéria!

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