ARQUITETURA SUSTENTÁVEL: A DISTÂNCIA ENTRE DISCURSO E PRÁTICA

Leonardo Shieh e Jörg Spangenberg

Introdução: arquitetos brilhantes, programa instigante e projeto inteligente mereceram a deferência da Fundação Holcim em seu prêmio anual para projetos sustentáveis. Será isso suficiente para que a teoria seja aplicada, na prática, no decorrer da construção do edifício premiado? A seguir, a curiosa história deste percurso pode nos indicar questões importantes quanto à maturidade do mercado e à viabilidade econômica das soluções propostas.

Arquitetura é uma das mais antigas práticas profissionais, e ainda assim, clamamos recentemente reinventá-la com o tal paradigma da "sustentabilidade". Mas não é desde sempre que o homem busca a melhor orientação solar para a sua habitação? A melhor ventilação para a sua casa? Usa os materiais mais apropriados para seu clima e lugar?

Então, qual a novidade no discurso? Enumeramos abaixo algumas possibilidades teóricas que ajudam a responder a última questão, observadas a partir de um caso prático desenvolvido pelo nosso escritório. Mais do que as próprias soluções individuais, gostaríamos de relatar o percurso projetual e revelar a distância entre o discurso da sustentabilidade e a prática finalmente aplicada em obra.

Em janeiro de 2007, ganhamos um concurso fechado para a construção de um centro médico e social, em São Paulo. Na formulação de nossa proposta, buscamos a consultoria do arquiteto alemão Jörg Spangenberg (doutorando da Bauhaus em convênio com a FAU-USP), especialista em sustentabilidade na construção. Apresentamos aos jurados um projeto enraizado em diversas estratégias para melhor eficiência energética do futuro edifício. Comentamos, a seguir, os dois principais conceitos propostos:

1. Pré-Sombreamento do Edifício

Desde os primeiros casebres, o homem busca orientar suas paredes e janelas para faces convenientes. Mas nas grandes cidades, a geometria, localização e entorno dos terrenos são fortes limitantes. Em edifícios de programas mais complexos que a moradia, comumente os projetistas se deparam com grandes lajes e blocos, tornando-se difícil obter o ideal de insolação e ventilação natural.

Em nosso projeto-exemplo, dado o aproveitamento do terreno, calhamos com grandes empenas nas temíveis faces leste e oeste. Qual a solução "natural" dada pelo nosso consultor Spangenberg, para evitarmos grande ganho térmico e ofuscamento? O pré-sombreamento das empenas, ou seja, impedir que a radiação chegasse diretamente no plano das janelas1.

Adotamos então, uma solução geral de chapa metálica perfurada, pintada na cor branca. Ficamos muito contentes com o resultado plástico: um grande prisma metálico e uniforme, que fizemos parecer flutuar.

Verificamos o visual e o nível de luminância do interior de todas as salas. Simulações foram realizadas até especificarmos o dimensionamento ideal dos furos, que não podiam ser muito pequenos e recorrentes (a ponto de não permitirem a passagem de luz), e nem grandes demais (que gerassem sombra com marcadas bolotas de luz). Enfim, chegamos a uma especificação precisa para a difusão de luz que se pretendia.

Essa solução, que era a "cara" do prédio, foi descartada depois de um ano de projeto executivo. Ao licitarmos o projeto entre construtoras, o item “estrutura e chapa metálica para fachada” destacava-se em mais de um milhão de reais. O cliente, uma instituição gerida através de doações, não pôde dispor dessa estratégia projetual para economia futura de energia (nossa estimativa era de uma redução média de 30% na conta de eletricidade).

Resolvemos, depois de muito pesar, reduzir ao máximo a área envidraçada das grandes empenas leste e oeste. E nas janelas, lançamos mão de vidro refletivo e persianas internas. Plasticamente, mudamos bastante a “cara” do edifício, agora de aspecto mais comportado.

2. Geotermia

Desde o concurso, procuramos alternativas ao grande vilão em custo energético nos prédios atuais: o ar-condicionado. Nossa solução baseava-se no conhecimento de que no subsolo, a poucos metros de profundidade, a temperatura do solo é constante. O conceito da geotermia é amplamente difundido como fonte de energia passiva na Alemanha, por exemplo, há décadas. Pequenas residências utilizam da temperatura estável do subsolo, insuflando na casa ar quente nos invernos rigorosos, ou ar frio nos verões quentes.

A idéia lançada em nosso projeto era de passar ar externo por serpentinas enterradas, de modo que o ar se pré-resfriasse antes de ser insuflado ao interior. Assim, bastaria complementar com ar condicionado convencional as salas que exigissem temperatura mais rigorosamente controlada. 

Mas nossa estratégia sofreu um revés ao realizarmos a sondagem do solo: lençol freático a -3,5m, ou seja, justamente na faixa em que o solo começa a ter temperatura estável. Como disporíamos dutos cheios de ar num meio completamente encharcado? Como garantir a qualidade deste ar em contato com umidade, e a possibilidade de manutenção dos dutos?

Pensamos muito, e decidimos usar o mesmo conceito da geotermia, mas de forma radicalmente diferente. Ora, temos abundância de água subterrânea, que é fria. Por que não usarmos a própria, como líquido de arrefecimento de um ar condicionado que convencionalmente utiliza água gelada? A única diferença é que não teríamos água gelada por compressores elétricos, mas água fria aos seus 19º C. Não teríamos um ar-condicionado potente, mas consumiríamos bem menos energia com o pré-resfriamento por água subterrânea.

As simulações de Spangenberg nos direcionaram a um dimensionamento ideal deste sistema, onde se conseguiria o chamado “grau de conforto” para 90% das pessoas em 90% do tempo. Um índice mais do que satisfatório já que para atingir 100% em 100%, precisar-se-ia de equipamentos exponencialmente maiores ou a versão usual de ar condicionado.

A grande incógnita era a qualidade da água de lençol freático. Como admitirmos uma água potencialmente suja e alcalina, sempre renovada, a um sistema de fan-coil em que as serpentinas são finíssimas e cheias de curvas? Depois de muita pesquisa, a solução encontrada foi o acréscimo de um trocador de calor no sistema. São vários os modelos disponíveis no mercado (e é claro que nunca passou pelas nossas cabeças de arquitetos nos envolvermos em tal assunto), mas acabamos especificando o de placas aletadas. O conceito é simples: dois circuitos de fluídos que nunca se misturam, mas fazem à troca térmica entre eles pelo contato das placas metálicas.

Estariam assim resolvidos todos nossos problemas técnicos. Mas esbarramos novamente nos custos. Não que o desse sistema fosse exageradamente alto, mas por um preço similar, optou-se por colocar ar condicionado convencional em todo o edifício. O argumento do cliente é compreensível: por que adotar um sistema alternativo, com grandes chances de não dar certo (especialmente quando não podemos prever alterações futuras de vazão e temperatura da água do lençol freático), se poderiam aplicar o ar condicionado convencional contentando 100% dos usuários? 

Nosso sistema foi orçado por um preço mais caro do que estimamos em nossa planilha de custo-benefício. Não valia correr o risco de não dar certo em um prédio de grande público.

O Aprendizado

Gastamos muitas horas discutindo conceitos com Jörg Spangenberg, e isso foi extremamente sadio. Ele e colegas fizeram simulações sobre fluxos termodinâmicos, grau de iluminação natural e artificial, massas térmicas de jardins, e muitos outros fatores incomuns ao arquiteto-generalista.


Para nós, fica essa proximidade com a alta tecnologia computacional, que hoje permite aplicarmos conceitos antigos e intuitivos como a geotermia, mas de forma mais precisa e, porque não, compacta. Compacta a ponto de um sistema natural de resfriamento de ar caber em uma casa de bombas de 2x2m. Compacta se compararmos com os grandes lagos e túneis que o grande arquiteto Lelé magistralmente utiliza para resfriar o ar de seus hospitais. Quiçá, poderíamos atingir algo similar com dispositivos cada vez mais econômicos, bastando à ferramenta da simulação computacional.


Para o Spangenberg e colegas, ficou a experiência de lidar com um cliente real, que se importa com custos, manutenção e funcionalidade. Ficou a experiência de realizarmos um complexo relatório de custo x benefício, com conceitos de life-cycle cost, ou seja, tempo de retorno do investimento inicial (em comparação a alternativas). Sabemos agora, como sugerir e pesar estratégias de eficiência energética a clientes.

Quanto ao edifício que projetamos - e que agora está quase concluído - restaram algumas estratégias “verdes”: espelho d’água para umidificar o micro clima na empena oeste, cobertura verde, painéis solares de aquecimento de água e o reuso de água pluvial. Restou, também, a certeza de que tentamos uma série de alternativas e que ampliamos o conhecimento tecnológico. O edifício, modéstia à parte, é ainda bastante elegante, apesar de plasticamente diferente do inicial. Mas o mais importante é que com a economia da chapa perfurada, o prédio se tornou viável e está prestes a abrir as portas. O interior, inalterado pelo projeto, atenderá um grande número de usuários em suas instalações médicas e de assistência social. 

A distância entre o discurso e a prática da sustentabilidade se estreitará naturalmente, com a familiaridade dos profissionais com os recursos computacionais e montagem de sistemas low e high-tech. Quando conseguirmos provar que tais tecnologias funcionam perfeitamente e que, apesar de parecerem custosos, valem a pena, não haverá cliente que prefira o status quo.

1. Nosso colega alemão gosta de dar o intuitivo exemplo de dois carros estacionados, um sombreado por uma árvore e outro, exposto ao sol. Gosta também de criticar os edifícios que não se protegem passivamente do sol, brincando com o que chama de “Dilema do Iced Tea (chá gelado)". Primeiro se usa energia para aquecer e fazer o chá, e depois mais energia ainda para se gelar o chá quente.
Compartilhe no Google Plus

Sobre Unknown

    Comentar com o Blogger
    Comentar com o Facebook

1 comentários:

  1. Impressionante o texto, adorei ler. Achei importante para a pesquisa que estou fazendo, e me abriu portas sobre o sistema de ventilação geotérmica que estou querendo abordar em um trabalho de pesquisa e vou pesquisar mais sobre Leonardo Shieh e Jörg Spangenberg, até gostaria de saber qual foi o texto ou trabalho que foi usado como base para esta postagem. Estou idealizando e pesquisando uma forma de possibilitar esse tipo de ventilação geotérmica para residencias, de forma viável e atingindo uma eficiência eficaz.
    E com esse texto esse blog entrou na minha lista de favoritos, Obrigado !

    ResponderExcluir